Por: Gabriel Araujo Zambon | Prompte et Sincere

A valorização da vida humana e de sua dignidade tem sido um grande marco na cultura ocidental trazido pela influência judaico-cristã. Não é à toa que a ética de uma sociedade que se enxerga como pós-cristã irá necessariamente derrubar colunas de sua estrutura que dependiam da sustentação da ética cristã.
Essa ética secular, naturalista, tem no aborto e na eutanásia as posições mais evidentes de sua natureza pragmática e utilitarista, diante do ataque às fronteiras do valor intrínseco da vida humana.
Um retrato recente pode ser visto no atual debate sobre leis de eutanásia no Canadá para sua permissão a deficientes físicos. Um acadêmico canadense argumenta claramente contra o que chama de “cultura da vida”, afirmando que “nós colocamos valor demais sobre a vida humana e seria melhor que colocássemos menos” (HANANIA, 2023, tradução nossa).

A questão do aborto em particular não pode ser entendida apenas como um tópico isolado. Colson e Pearcey (2000, p. 155) destacam o sintoma maior do assunto: “O aborto tem sido sempre mais do que aborto. Ele é a pavimentação utilizada para causar a ruptura do compromisso histórico ocidental com a dignidade da vida humana.”

Seria possível imaginar que, a nível nacional, o Brasil estaria mais imune a esta agenda, considerando uma pesquisa de setembro de 2022 que indica que 70% dos brasileiros são contra a legalização do aborto (G1, 2022).

Contudo, quando se olha para a força da agenda progressista nas universidades e na mídia, percebem-se as constantes investidas na promoção do que é chamado de “direitos reprodutivos”.

Mais temerário ainda fica o cenário, diante do início de um novo governo cuja liderança já indica abertamente seu compromisso hediondo, tratando-o apenas como questão de saúde pública e direito feminino (GAZETA DO POVO, 2023).

Diante disso, a atualidade do tema fica em evidência, além de sua urgente importância, visto não se tratar de uma questão restrita às mulheres, mas à própria humanidade como um todo. Como Stott (2019, p. 498) bem coloca: “As questões de aborto e eutanásia dizem respeito à nossa doutrina de humanidade e à nossa doutrina de Deus.”; e prossegue dizendo que “a decisão de terminar uma vida humana envolve o julgamento implícito de que uma forma específica de vida humana não é digna de respeito máximo.” (STOTT, 2019, p. 498).

A consequência é a negação do valor da vida humana, que parte da sua feitura à imagem e semelhança de Deus. Essa negação abre o horizonte para uma gama de atentados contra a vida, como Koop e Schaeffer expõem: “Se o homem não foi feito à imagem de Deus, então nada impede a desumanidade. Não há uma boa razão para a humanidade se considerar especial, a vida humana é barateada. Pode-se ver isso em muitas das grandes questões debatidas na sociedade atual: o aborto, o infanticídio, a eutanásia, o aumento do abuso infantil e da violência de todos os gêneros, a pornografia (e seus tipos particulares de violência que se evidenciam no sadomasoquismo), a tortura rotineira de prisioneiros políticos em muitas partes do mundo, a explosão do crime e a violência aleatória que nos cerca.” (KOOP; SCHAEFFER, 2020, p. 36)

Essa perda de coerência traz consigo uma profunda hipocrisia para os movimentos de luta pelos direitos humanos, de viés progressista. Os autores bem pontuam isso: “Hoje ainda há grandes protestos porque a sociedade no passado não considerava ’pessoas’ os negros escravizados. Agora, por um absoluto arbitrário introduzido no fluxo humanista, o direito semelhantemente declara milhões de nascituros de toda cor de pele ‘não pessoas’”. (KOOP; SCHAEFFER, 2020, p. 42)

A ética materialista alterna entre variados critérios para definir o que seria uma pessoa e quando seria possível dizer que a vida começa. As tentativas vão desde a capacidade de experimentar sofrimento, batimentos cardíacos, até a posição mais radical que justificaria até o infanticídio: de que não são pessoas até que sejam racionais e autoconscientes.

Colson e Pearcey (2000, p. 157) tratam sobre isso quando falam a respeito de Peter Singer, um professor de bioética em Princeton, e sua defesa de que os pais teriam permissão até de matarem bebês deficientes, com base nesse argumento. Ele vai além em seu argumento, para defender a morte de pessoas incapazes de qualquer idade, “se seus familiares decidirem que suas vidas ‘não valem a pena ser vividas’.” (COLSON; PEARCEY, 2000, p. 157).

Colson e Pearcey se perguntam o que irá acontecer quando os alunos expostos a esse tipo de ética desumana chegarem às posições de poder. Esse momento já parece ter chegado, como visto no caso canadense. A busca por se definir um número de semanas limitante para o “direito ao aborto” escancara a fragilidade do argumento abortista de querer encontrar um período onde o não nascido não precise ser considerado uma pessoa.

Stott (2019, p. 506) deixa bem claro essa fragilidade: “não existe ponto entre concepção e morte em que possamos dizer: ‘Depois daquele ponto eu era uma pessoa, mas antes dele eu não era’ Certamente o feto está vivo, e certamente a vida que ele possui é humana. Na verdade, muitas pessoas da área médica que não professam a fé cristã reconhecem esse fato.”

A encruzilhada materialista esbarra então com uma pergunta sempre presente: “Em que ponto no tempo pode-se considerar a vida sem valor e, no minuto seguinte, preciosa e digna de ser salva?” (KOOP; SCHAEFFER, 2020, p. 46). Não há saída coerente, a não ser a da inevitável tendência ao radicalismo do argumento de Peter Singer.

A posição “progressista” se mostra, portanto, um tanto quanto retrógrada, rememorando civilizações antigas que sacrificavam crianças a deuses, ou até mesmo o Império Romano onde bebês indesejados eram abandonados à morte.

Diante dessa constatação, Stott (2019, p. 501) provoca: “Podemos alegar que a sociedade ocidental contemporânea é menos decadente porque entrega seus bebês indesejados ao incinerador do hospital, e não ao lixão municipal? Na verdade, o aborto moderno é ainda pior do que a exposição antiga, porque ele tem sido comercializado e se tornou, pelo menos para alguns médicos e algumas clínicas, uma prática extremamente lucrativa.”

O homem pós-moderno, no auge de sua arrogância, julga estar vivendo a vanguarda de seu progresso cultural e tecnológico. Contudo, o coração idólatra da humanidade acaba por revelar as mesmas tendências, com a alteração apenas no formato e sofisticação dos ídolos. Koop e Schaeffer (2020, p. 121) arrematam a questão:
“Nos tempos do Antigo Testamento, Deus expressou repugnância especial à prática cananeia do sacrifício infantil. Com o paganismo, isso não se limitava aos cananeus. Por exemplo, os antigos europeus também ofereciam a prole aos deuses. Essas pessoas matavam os filhos a fim de obter dos deuses, como esperavam, paz e prosperidade pessoais. Hoje, o aborto indiscriminado, o infanticídio e a eutanásia também são realizados à procura de paz e prosperidade pessoais. As pessoas que destroem os próprios filhos e os dos outros, para que mantenham seu estilo de vida também fazem sacrifícios aos deuses da cosmovisão e prática materialistas e ao deus chamado ‘eu’ — o centro egoístico e medida de todas as coisas.”

Dessa forma, foram apresentadas algumas das implicações da temática do aborto, diretamente relacionada com a dignidade da pessoa humana. Implicações que permanecem atuais e indicam uma longa estrada de disputas de cosmovisões. É necessário, portanto, um preparo bíblico sobre a questão e para o cuidado pastoral e de discipulado com as pessoas afetadas dentro da igreja.
Passa-se agora a uma breve análise bíblica. Abordagem bíblica Seria um equívoco muito grande ignorar o que a Bíblia tem a dizer a respeito do aborto apenas por não haver uma condenação explícita nela. Isso negaria a suficiência das Escrituras não apenas nesta questão, mas em grande parte das aplicações que são feitas a partir da sabedoria bíblica.
Contudo, um rápido panorama sobre algumas passagens bíblicas deixa bem evidente o testemunho bíblico de considerar o não nascido como uma pessoa e, portanto, implicando diretamente na condenação ao aborto. Iniciando pelos dez mandamentos, já é possível ter-se instrução ética a partir do mandamento do “não matarás”.
A ética reformada, que enfatiza as dez palavras como o código moral basilar, aponta que os mandamentos ali listados não são apenas no sentido negativo, de se evitar o que está descrito. Eles também acabam por ordenar o seu oposto, de maneira positiva. Logo, o “não matarás” exige que seja feito todo o possível para a preservação da vida, a fim de evitar qualquer causa para a destruição da vida.
Seguindo essa linha de pensamento, Frame (2013, p. 689) argumenta que ainda que alguém rejeitasse todas as passagens bíblicas que tratam os seres humanos como pessoas desde a concepção, apenas o risco de se estar destruindo uma vida deveria ser suficiente para a proteção de toda vida não nascida. Ele conclui: “Nossa tendência deve ser a favor da vida. Diante da incerteza quanto a matar ou não, devemos escolher a vida e não a morte.” (FRAME, 2013, p. 689).

Há ainda um outro mandamento afetado quando se contempla a busca pelo aborto como forma de se “livrar” das consequências de se ir contra a ordenança do casamento e da procriação: o “não adulterarás”. Com a revolução sexual e o avanço da tecnologia dos métodos contraceptivos, a vida de imoralidade conseguiu relativa segurança em se evitar gravidezes indesejadas.

Contudo, elas ainda acabam ocorrendo, e daí vem a busca feminista por uma igualdade na libertinagem masculina, buscando no aborto essa garantia. Murray (2020), ao tratar da ordenança do casamento, ensina que a profanação dos relacionamentos matrimoniais estava diretamente ligada ao caos de corrupção e violência em Gênesis 6. Ele assim resume: “a profanação do casamento é complementar ao vício da violência e da opressão.” (MURRAY, 2020, p. 46).

Dessa forma, pode-se inferir que a quebra dos padrões de Deus para o casamento resulta na violência intrínseca ao aborto (assassinato), além de outras situações como a coerção que mulheres experimentam, pressionadas por parceiros. Prosseguindo agora para uma passagem da Escritura que trata de forma mais próxima do tema, tem-se o trecho da lei mosaica de Êxodo 21.22-25.

Aqui, a passagem regula uma situação onde dois homens brigam e ferem uma mulher grávida. Uma interpretação é de que a expressão que a ARA traduz como “aborte” seja melhor traduzida com “dar à luz prematuramente”. Nessa linha, não haveria “maior dano”, o que exigiria o pagamento de uma multa determinada por juízes. Caso houvesse dano grave, entraria em vigor a possibilidade de pena capital, o que demonstraria que o feto é tratado, biblicamente, como uma pessoa.

Mesmo considerando a outra possibilidade de interpretação, de que o verso 22 se remeteria a um aborto espontâneo, ainda assim não se pode concluir que a Bíblia está justificando o aborto por apenas exigir uma multa e, em contraste com a mãe, exigindo punição para um crime capital.

Frame (2013, p. 685) explica isso ao lembrar que “não é possível chegar a conclusões sobre a pessoalidade a partir das penalidades”, chamando a atenção para a lei que punia monetariamente quem matasse um escravo. Mesmo interpretando dessa forma, a proteção especial dada às grávidas e seus filhos está a favor da vida.
Outra passagem marcante é o Salmo 139.13-16, onde “Davi se refere à sua vida não nascida como totalmente pessoal” (FRAME, 2013, p. 686), assim como acontece no uso bíblico geral, de tratar as crianças não nascidas como pessoas. Stott (2019, p. 510) observa três características da perspectiva bíblica nessa passagem, resumida em três palavras: criação, continuidade e comunhão.
Ele argumenta que Davi deixa clara sua criação por Deus no ventre materno, mostrando um senso de continuidade de sua vida pré e pósnatal como a mesma pessoa, além da expressão de um relacionamento que Deus sustenta e estabeleceu desde os dias de sua concepção. O mesmo Davi irá reconhecer no Salmo 51.5 que já era um pecador quando não nascido e, logo, um ser pessoal.
E pela mesma lógica, em Juízes 13.3-5, é dito que a mãe de Sansão deveria observar as restrições dos nazireus, provando que seu filho já era um nazireu mesmo antes de nascer e, por isso, uma pessoa. Por fim, olhando para o exemplo do Senhor Jesus em Lucas 1.35, e sua concepção pelo Espírito Santo, tem-se um dos argumentos bíblicos mais fortes para a pessoalidade dos não nascidos.
Frame (2013, p. 688) torna o argumento evidente em seu questionamento: “Em algum ponto de sua concepção ele foi algo menor que uma pessoa? Certamente que não. Desde a concepção, ele era uma pessoa divino-humana.”

Abordagem Pastoral

Diante da pesada campanha progressista e dos números alarmantes a respeito do aborto, a reação cristã muitas vezes é estridente e dura, como Frame (2013) afirma. O debate acalorado tende a ativar um modo de resposta de defesa apologética, impedindo a lembrança de que situações extremamente dolorosas na vida de pessoas estão envolvidas.
Os números que alarmam para a tragédia do aborto destacam não apenas a necessidade de se defender a verdade e combater o engano do pecado fazendo teologia pública. Eles também implicam que as pessoas envolvidas, que carregam traumas e pesos de culpa enormes, estarão mais próximas do que se imagina, seja na família ou na igreja.
É que aqui que entra a urgente necessidade de uma postura amorosa e do aconselhamento, diante de situações trágicas e dolorosas. Frame (2013) fala na necessidade de se enfatizar mais o elemento da misericórdia da defesa da vida, no intuito de não apenas ser um ministro de misericórdia na vida das mulheres, mas também que a “nossa mensagem soe de maneira misericordiosa” (FRAME, 2013, p. 695).
A defesa da verdade deve ser um chamado para a ação ao mesmo tempo, de forma a cuidar tanto da construção de uma cultura da vida na sociedade quanto em promover o evangelho e sua esperança no cuidado das almas. Isso exige uma postura holística quanto a todos os problemas sociais, espirituais e econômicos envolvidos, sempre lembrando da primazia da pregação.
Como Stott (2019) ressalta: “No fim, mais importante do que educação e ação social, por mais vitais que sejam, é a boa-nova de Jesus Cristo. Ele veio para confortar os angustiados e apoiar os fracos. Ele nos chama para tratarmos toda a vida humana com reverência, seja o nascituro, seja o recém-nascido, seja o deficiente, seja o senil.” (STOTT, 2019, p. 525)

O compromisso com a verdade não pode comunicar um mensagem não verbal de juízo condenatório sobre mulheres que abortaram ou a homens cujas vidas de irresponsabilidade produzem gravidezes indesejadas. Dizer a verdade em amor é um chamado a imitar a Cristo, que confrontava o pecado mas de maneira misericordiosa, como no caso da mulher samaritana.
É preciso dizer-lhes: “há perdão em Deus (Salmos 130:4). Cristo morreu pelos nossos pecados e nos oferece um recomeço. Ele ressuscitou e vive, e, por meio de seu Espírito, pode dar-nos um novo poder de autocontrole. Ele também está construindo uma nova comunidade caracterizada por amor, alegria, paz, liberdade e justiça. Um novo começo. Um novo poder. Uma nova comunidade. Esse é o evangelho de Cristo.”

REFERÊNCIAS

COLSON, Charles; PEARCEY, Nancy. E agora, como viveremos? Rio de Janeiro: Editora CPAD, 2000. 2ª edição.
FRAME, John M. A doutrina da vida cristã. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2013. G1. Ipec: 70% dos brasileiros dizem ser contra a legalização do aborto.
G1, 2022. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2022/09/13/ipec70percent-dos-brasileiros-dizem-ser-contra-a-legalizacao-do-aborto.ghtml. Acesso em: 04/01/2023.
GAZETA DO POVO. “Para nós, o aborto é questão de saúde pública”, diz ministra das Mulheres de Lula. Gazeta do Povo, 2023. Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/para-nos-o-aborto-equestao-de-saude-publica-diz-ministra-das-mulheres-de-lula. Acesso em: 04/01/2023.
GAZETA DO POVO. Nísia Trindade assume Ministério da Saúde e promete revogar uma série de portarias. Gazeta do Povo, 2023. Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/republica/nisia-trindade-assume-ministerioda-saude-e-promete-revogar-uma-serie-de-portarias. Acesso em: 04/01/2023.
HANANIA, Richard. Canadian Euthanasia as Moral Progress. Richard Hanania’s Newsletter, 2023. Disponível em: https://richardhanania.substack.com/p/canadian-euthanasia-as-moral-progress. Acesso em: 04/01/2023.
KOOP, C. Everett; SCHAEFFER, Francis. O que aconteceu com a raça humana? Brasília: Editora Monergismo, 2020. Edição do Kindle.
MURRAY, John. Princípios de conduta: Aspectos da ética bíblica. Brasília: Editora Monergismo, 2020.
STOTT, John. O cristão em uma sociedade não cristã. Rio de Janeiro: Editora Thomas Nelson Brasil, 2019. Edição do Kindle.

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Membro da Igreja Presbiteriana do Brasil em Francisco Beltrão, PR, Brasil, 2016-atual.

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