Por: Gabriel Araujo Zambon | Prompte et Sincere
Introdução
O estudo do Antigo Testamento (AT) para parte da igreja parece representar grande desafio, seja ao longo dos problemas envolvidos na história da Igreja (Marcião, por exemplo), seja pela dificuldade que muitos alegam ter para conciliá-lo com a mente pós-moderna. Diante deste cenário, muitas vezes o AT é negligenciado na prática da igreja, quer na pregação ou no ensino, sem mencionar a linha hermenêutica histórico crítica, que ataca frontalmente a autoridade e inspiração das Escrituras da antiga aliança.
Outro perigo presente ao lidar com o AT é o de considerá-lo apenas como conjunto de histórias de onde se tirar lições morais, utilizando-se dos personagens bíblicos como exemplos a serem seguidos. Aprender com princípios morais do exemplo de vida de homens e mulheres não é errado, pelo contrário, mas a questão está na direção antropocêntrica que se pode tomar, deixando de perceber a linha de continuidade da história da redenção naquele evento ou, ainda mais grave, não apontar para Cristo.
O objetivo deste estudo é utilizar o caso de Davi, em especial a história da luta com Golias, de forma a apontar para a progressão histórico-redentiva presente ali, além de analisar a aliança do reino, administrada por Deus com ele, de maneira a destacar a continuidade da revelação.
Pregando a Cristo em Davi e Golias
Uma das histórias mais conhecidas em toda a Bíblia é a de Davi e Golias, quando o jovem sem armaduras derrota o campeão dos filisteus, seu herói de guerra e um homem muito alto. As cenas da história eletrizante movem emocionalmente, com um desfecho poderoso de uma vitória improvável.
Histórias assim tocam o ser humano, criado à imagem e semelhança de Deus, que se revelou inclusive por meio de muitas delas nas Escrituras. Todas estas histórias apontando para a História da redenção em Cristo Jesus. A ideia de superação, da emocionante vitória do mais fraco, da derrota do mal e do sofrimento, demonstram que o homem não é mero produto da lógica da seleção natural, conformando-se à morte e domínio do mais forte, mas sim opera sob padrões sobrenaturais ao olhar para a criação.
Uma postura comum ao se deparar com histórias do AT como essa em questão, é fazê-la de uma forma biográfica, colocando a pessoa no lugar do personagem bíblico, aplicando as situações a exemplos de sua própria vida. Dessa forma, a pessoa é colocada na pele de Davi, passando a enxergar seus problemas como gigantes como Golias, sendo chamada a confiar em Deus para derrotá-los, a exemplo do jovem futuro rei de Israel. Esse tipo de abordagem traz grande prejuízo em sua ênfase antropocêntrica, ignorando e deixando de lado o grande salvador em questão, o Senhor Jesus Cristo.
Sermões guiados por esse método exemplarista podem perder de vista a Cristo e o todo da história da redenção. Em contraste a isso, Greidanus defende o método cristocêntrico, procurando encontrar a Cristo em cada história e passagem do AT:
“O método cristocêntrico complementa o método teocêntrico de interpretação do Antigo Testamento procurando fazer justiça ao fato de que a história de Deus de trazer seu reino sobre a terra é centrada em Cristo: Cristo, o centro da história da redenção, Cristo o centro das Escrituras. Na pregação de qualquer porção das Escrituras, deve-se entender sua mensagem à luz desse centro: Jesus Cristo”. (GREIDANUS, 2006, p. 259).
Não quer dizer que se deve cair no extremo oposto, forçando analogias onde o texto não permite, o que resultaria em um uso infiel e superficial do texto. Contudo, quando se percebe o todo das Escrituras, é possível localizar a passagem na história da redenção e chegar a uma aplicação cristocêntrica. Como Greidanus afirma:
“Um sermão cristão sobre o Antigo Testamento necessariamente irá na direção do Novo Testamento. Isso é óbvio quando o texto contém uma promessa que é cumprida em Cristo: o pregador não pode parar na promessa, mas, naturalmente, irá prosseguir com o sermão até o seu cumprimento. O mesmo ocorre quando o texto contém um tipo que é cumprido em Cristo: o sermão vai do tipo para o antítipo. Isso também acontece quando o texto relata um tema que é mais desenvolvido no Novo Testamento: no sermão, o pregador vai do tema do Antigo Testamento para seu desenvolvimento mais completo no Novo Testamento.” (GREIDANUS, 2006, p. 263)
A história de Davi e Golias, olhando apenas focalmente, ilustra três importantes princípios espirituais, conforme ensinam Arnold e Beyer (2015, p. 177): “deveríamos estar mais preocupados com a honra de Deus do que conosco, assim como Davi; a fidelidade passada de Deus em nossas vidas deveria nos encorajar a tomar mais passado de fé, como Deus permite a Davi matar um leão e um urso; e, nas batalhas que parecem impossíveis, lembrar que a batalha pertence ao Senhor. O coração do futuro rei é revelado aqui, apontando para a escolha de Deus segundo seu próprio coração.”
Indo um pouco além, analisando o contexto remoto, para a história nacional e real de Israel, nota-se que Samuel havia acabado de ungir o jovem pastor como rei de Israel de forma secreta. A seguir, Greidanus (2006, p. 272) resume a mensagem desse contexto: “Davi, o rei ungido de Deus, livra Israel e garante sua segurança na terra prometida”.
Ao último nível contextual, o contexto canônico, é onde encontra-se o relacionamento dessa passagem com a obra de Cristo. Caso parássemos no contexto remoto teríamos bons princípios e aplicações, mas ainda não se estaria pregando a Cristo. Não se trata apenas da coragem de um jovem e um grande livramento, mas da manifestação da fé de Davi e da graça de Deus, temas contínuos ao longo das Escrituras.
Clowney (2021, p. 35) explicita o ponto chave em questão: “Davi, como ungido do Senhor, é um tipo de Jesus Cristo, o Messias, que encontra e vence Satanás, o homem forte, libertando os cativos do Diabo (Lc 11.14-19)”. Deixar de apontar para Jesus pode trazer apenas um tom moralista para o sermão, de forma míope para o papel da tipologia e da fé dentro da história da redenção.
Greinadus (2006, p. 272), mais uma vez, argumenta de maneira completa sobre isso na passagem de Davi e Golias: “Davi não depende de sua própria força ou de armas ou de habilidade […] (1Sm 17.45-47). A essência dessa história, portanto, é mais que Israel [sic] vencer o inimigo de seu povo; a essência é que o próprio Senhor derrota os inimigos do seu povo. Esse tema localiza a passagem na estrada principal da história do reino de Deus que leva diretamente à vitória de Jesus sobre Satanás […] Assim, a batalha entre Davi e Golias é mais que uma luta pessoal; é mais que o rei de Israel vencendo um poderoso inimigo – é um pequeno capítulo na batalha entre a semente da mulher e a semente da serpente.”
Davi, em sua vitória improvável, movido pela glória e honra do nome de DEUS, derrota Golias, sem armamentos sofisticados ou armadura. Aponta para Cristo, que se esvazia de sua glória na encarnação, e conquista a vitória sobre a morte e o diabo (influência devido ao pecado) também de maneira inesperada para os padrões humanos, por meio da morte de cruz, inimaginável para aqueles que esperavam um líder político que dominaria sobre Roma.
É por causa da vitória de nosso Salvador por meio da humilhação e do sofrimento, da conquista da vida por meio da morte, que se pode entender o princípio da força na fraqueza, o paradoxo da vida cristã. Todo real princípio para a vida cristã flui da obra de consumada de Cristo.
A aliança do reino
O primeiro rei de Israel, Saul, foi instituído após um anseio marcado nas Escrituras como negativo, de querer ser igual às outras nações, em contraponto ao governo de Deus sobre suas vidas. O jovem Davi, ungido pela vontade e no tempo perfeito de Deus, experimenta agora a confirmação de que Deus estava com ele, tanto nesta estrondosa vitória, como também na aliança davídica, ou aliança do reino. O chamado “princípio Emanuel”, anunciado anteriormente em Levítico, por exemplo, de “Eu serei o vosso Deus e vós sereis o meu povo” (Lv 26.12), continua nesta administração da aliança com Davi.
Como Robertson (2010, p. 70) bem expõe: “O clímax da antiga aliança acontece na vinda do reino nos dias de Davi. A semente da mulher, destinada a esmagar a cabeça da serpente, é revelada como uma semente real. (…) A terra prometida a Abraão, que tem as mesmas dimensões do território da monarquia davídica, será governada mediante uma administração justa. A maior bênção da lei cairá em abundância sobre o povo de Deus por meio do governo bondoso do legislador que se assenta entronizado no Monte Sião.”
Davi e seus descendentes falham nos aspectos condicionais da aliança, mas o aspecto incondicional permanece, apontando para o reino messiânico e para o Rei verdadeiro, o Filho de Davi. Jesus é o cumprimento final das duas filiações relacionadas nas promessas a Davi: que um descendente de Davi teria Deus como seu pai. Ele é o Filho de Davi e o Filho de Deus.
Ao comentar sobre as diferenças de como os povos do antigo Oriente Próximo e Israel entendiam a realeza, Walton ensina que:
“Embora o rei israelita seja descrito como o filho de Yahweh e claramente desfrute de patrocínio divino, em geral está menos situado na esfera divina. Enquanto o rei egípcio está quase totalmente na esfera divina e o rei da Mesopotâmia, firmemente no meio, entre a divindade e os seres humanos, o rei israelita está quase inteiramente na esfera humana. Isso se aplica até mesmo ao futuro rei ideal de Israel. Por fim, como já foi mencionado, em Israel a aliança régia passou a ser associada a uma longa sucessão dinástica que se estende até o futuro ideal.” (WALTON, 2021, p. 307).
Em Jesus temos o Deus-homem, cem por cento homem e cem por cento Deus, que conquista a salvação de seu povo e provê o descanso da opressão dos inimigos. O trono de Davi e o trono de Deus, interconectado nesta aliança, “antecipa apropriadamente o reino escatológico de paz” (ROBERTSON, 2011, p. 188).
Robertson, ainda, afirma de forma vívida: “Jesus Cristo, o Messias de Davi, agora se assenta no trono de Deus, que é o trono de Davi. Ele governa no céu à mão direita de Deus, o cumprimento da sombra da antiga aliança na nova. A promessa de um governo eterno mediante o Filho divino de Davi encontra o seu cumprimento no governo de Cristo à mão direita de Deus, o Pai.” (ROBERTSON, 2010, p. 73)
Davi, como um tipo de Cristo, e por ser um tipo, demonstra pontos falhos que acabam por apontar para o futuro, para o Cristo que cumpriria todas as promessas e seria perfeito. Groningen (2017, p. 561), ao tratar de Davi como o mediador pactual real, destaca suas falhas como pai pactual e marido, dando a Satanás oportunidade de causar grande destruição na família real.
Diz ainda ele: “A antítese (inimizade) estabelecida entre a semente da mulher e a semente de Satanás tornou-se uma realidade trágica. A maior tragédia foi que a antítese existia e causava derramamento de sengue dentro da própria família real” (GRONINGEN, 2017, p. 562).
Salomão, sucessor de Davi, constrói o templo, mas termina seus dias mergulhado na idolatria de suas esposas. A dinastia de Davi continua com reis maus alternando com reis que buscam a Deus, chegando ao julgamento inevitável do exílio.
A volta do exílio é marcada por esperança, com a vinda e liderança de um descendente de Davi, Zorobabel. Contudo, apesar da genealogia culminar em Cristo, após Zorobabel não havia um trono em Israel, com um descendente de Davi. “Qual a solução para esse problema?” questiona Robertson (2011, p. 2011).
E continua: “O reino de Deus foi projetado para antecipar, em forma de sombra, a realidade do Redentor messiânico que deveria unir definitivamente o trono de Davi ao trono de Deus. Assim como o sacerdócio levítico antecipava o sacerdócio permanente de Jesus Cristo; assim como Moisés e os profetas antecipavam o profeta par excellence; assim também Davi e o seu trono antecipavam o reino benéfico do Messias vindouro. É nesse contexto que deve ser entendida a falha da linhagem de Davi. Em todos os tipos do Antigo Testamento havia uma inadequabilidade inerente, que exigia cumprimento mais perfeito.” (ROBERTSON, 2011, p. 202)
Os propósitos de Deus não seriam frustrados; o cenário estava preparado para a volta do filho de Davi ao trono de Israel. A aliança seria cumprida, apesar das tantas quebras dos aspectos condicionais. E até mesmo algo que parecia sugerir uma questão de desaprovação ética de Davi, para não construir o templo, apontaria para o futuro escatológico, onde o período de conquista terá terminado e haverá a presença de Deus nos novos céus e nova terra, num templo que desce do céu à Jerusalém.
Longman III (2018, p. 51) explica a proibição de Davi não construir o templo: “O princípio por trás da proibição não era ético, mas histórico-redentor. O templo representava o cessar das batalhas de conquista; ele simbolizava o estabelecimento na terra. Davi foi quem completou a conquista. Ele derrotou os últimos habitantes da terra, mais notavelmente os filisteus. Como aquele que completou a conquista, no entanto, ele não iria construir o templo. Isso foi deixado para seu filho, Salomão, que herdou a terra de seu pai.”
Considerações finais
O estudo do Antigo Testamento permanece relevante e vital, pois é revelação autoritativa de Deus, útil para edificação. Nele encontramos descrições vívidas da obra e ofícios de Cristo, além de promessas sendo cumpridas na primeira vinda do Salvador, e um cronograma para a consumação. Pode-se ter grande confiança de encontrar a Cristo no Antigo Testamento, e maravilhar-se na continuidade da aliança da graça de Deus, da grande História da qual as outras são sombras