Por: Raphael Rocha Quintão | Prompte et Sincere

SAILHAMER, John. Genesis Unbound. Colorado Springs: Dawson Media, 2011, 264 P.

Genesis Unbound é um livro polêmico, como o próprio John Sailhamer afirma na introdução da obra. O livro propõe uma abordagem ao texto da criação que se baseia na análise do hebraico original, evitando interpretações que busquem harmonização com teorias científicas modernas. Sailhamer é um teólogo amplamente respeitado nos Estados Unidos, com várias publicações, incluindo comentários bíblicos. Sua obra mais conhecida, Genesis Unbound, foi inicialmente publicada em 1996 e segue influente até os dias de hoje. O autor lecionou no Seminário Batista Golden Gate, na Califórnia, até seu falecimento em 2017.

A introdução do livro apresenta um excelente panorama geral de sua argumentação. O livro é estruturado em quatro partes. Na primeira, Sailhamer mostra por que a discussão sobre os primeiros dois capítulos de Gênesis é importante, ou seja, justifica a relevância de seu livro. A parte dois dispõe seus argumentos basilares, os principais pontos de sua proposta. A terceira parte é uma exposição detalhada, quase versículo por versículo, do relato da criação. A última parte traça um panorama histórico da interpretação desses primeiros capítulos das Escrituras, ressaltando a importância das traduções na construção de significados teológicos.

No primeiro capítulo, o autor argumenta que a interpretação do relato da criação é um desafio complexo. Ele questiona se a ciência moderna pode contribuir para a compreensão do texto bíblico e conclui que não, pois Gênesis deve ser interpretado em seus próprios termos. Esse ponto, contudo, pode ser problemático, pois outras passagens das Escrituras frequentemente ajudam a esclarecer trechos mais obscuros.

De qualquer forma, o autor advoga que o texto deve falar por si mesmo, evitando interpretações consagradas. Essa abordagem está diretamente ligada ao capítulo dois, que argumenta que primeiro devemos compreender o significado do texto, antes de tentar adaptá-lo à ciência moderna. A ciência não pode ser a base hermenêutica para o relato da criação. O pressuposto para isso é muito simples: Moisés não sabia e não levou em consideração as descobertas científicas ao compor Gênesis. Tentar encaixar a ciência atual em Gênesis é, talvez, o maior anacronismo que se pode cometer. Entretanto, é interessante perceber que pode haver um equilíbrio entre essas visões. O texto deve falar por si mesmo e pode dar luz a certas afirmações científicas. Sailhamer coloca algumas questões importantes: a idade do universo, a origem da vida e a teoria da evolução. O texto pode e de fato traz reflexões sobre essas questões.

O capítulo três é onde o autor introduz seus principais pontos. Ele argumenta que a palavra hebraica não indica um início absoluto, mas sim um período indeterminado de tempo. Sua argumentação se baseia no uso de reshid em Reis e Crônicas, conferindo maior consistência ao seu ponto. Essa interpretação de Sailhamer bastante acertada. O ponto mais interessante decorrente desse argumento é que não podemos afirmar a idade ou o período desse princípio. Isso quer dizer que a terra pode ser jovem, intermediária ou antiga, e isso não altera o significado do texto. O mesmo raciocínio pode ser aplicado à hipótese de um “hiato” ou intervalo de tempo entre o princípio e o primeiro dia da criação. Sendo um princípio indeterminado, não podemos saber se houve ou não esse intervalo, e, na verdade, essa questão é secundária. O fato é que Deus é o criador de todas as coisas e fez isso em algum momento na eternidade, sem que possamos determinar quando ocorreu o reshid.

Ainda no terceiro capítulo, Sailhamer introduz o ponto mais polêmico de sua argumentação: a ideia de que eretz, a terra, se refere exclusivamente à Terra Prometida. Mas é no capítulo quatro que o autor constrói seu argumento. Deus, nos seis dias da criação, estaria preparando a Terra Prometida para que o homem habitasse nela. Um ponto adicional fundamental para Sailhamer é que a expressão “céus e terra” em Gn 1:1 constitui uma unidade semântica, referindo-se ao universo como um todo. Curiosamente, esse entendimento parece evidente à primeira vista, mas, considerando a tese de Sailhamer, ele se torna menos óbvio, já que “terra” seria apenas a Terra Prometida.

No capítulo cinco, Sailhamer apresenta outro argumento essencial: o significado de “sem forma e vazia”. Segundo o autor, essa expressão em hebraico significa “inóspita”, ou seja, não pronta para a habitação humana. Isso se contrasta diretamente com a visão grega de que existiria um caos primordial na matéria—a interpretação sugerida por muitas traduções. Essa perspectiva reforça a ideia de que o texto bíblico descreve um processo de preparação para a vida humana, e não um estado de desordem cósmica inicial.

No capítulo seis, Sailhamer aprofundará sua tese de que a terra descrita em Gênesis 1 e 2 é a Terra Prometida. A semelhança entre a descrição da terra em Gênesis 1 e a do jardim em Gênesis 2 é notável. Deus preparou a terra para que Israel habitasse desde o princípio. Além disso, o princípio da obediência e da fé já estava presente em Adão e Eva, assim como deveria estar nos israelitas que seguiam Moisés. A presença de Deus no Jardim é uma prévia do Tabernáculo. Sailhamer propõe um contraste interessante: podemos interpretar Gênesis a partir do contexto do Antigo Oriente Próximo ou a partir do contexto que a própria Bíblia oferece. Ele defende a segunda abordagem, argumentando que o relato da criação deve ser entendido dentro da estrutura do Pentateuco como um todo. Sobre os supostos dois relatos da criação, o autor sugere que Gn 1 deve ser lido em conexão com Gn 2, principalmente em relação ao ponto central de sua argumentação: Gn 1:2–2:25 descreveria a criação da Terra Prometida, do Jardim do Éden. Essa, essencialmente, é a tese de Sailhamer.

Na terceira parte do livro, o autor analisa cada dia da criação. Aqui, Sailhamer tem mais liberdade para refutar interpretações que considera equivocadas. A análise das traduções é um aspecto especialmente relevante dessa parte do livro, pois ele mostra como algumas versões já trazem interpretações embutidas no texto. Outra tese relevante apresentada nesta seção é a de que a luz do primeiro dia seria a luz física, interpretação que diverge da maioria dos comentaristas. Discordo dessa conclusão, mas reconheço que as observações do autor são instigantes: Deus fez os animais, o sol, a lua e todas as coisas no reshid, agora ele está apenas ordenando e trabalhando na Terra Prometida para que ela fique habitável para o homem. Deus estava apenas “populando” a Terra Prometida com animais para que o homem pudesse habitar nela.

A quarta e última parte examina a história da interpretação do texto da criação ao longo dos séculos. No capítulo introdutório dessa seção, Sailhamer faz algumas observações relevantes, argumentando que as descrições de Gênesis 1 e 2 são válidas, mesmo sendo “pré-científicas”. Dessa forma, ele ressalta que interpretações mais recentes não são necessariamente superiores às mais antigas. Apresentando princípios hermenêuticos, Sailhamer enfatiza a importância da humildade ao interpretar esse texto, destacando que diferentes perspectivas podem contribuir para uma compreensão mais profunda. Ele critica, de maneira bem fundamentada, a tentativa de muitos estudiosos de enquadrar o relato da criação dentro de um modelo científico, ainda que reconheça a boa intenção por trás desses esforços. O autor analisa diferentes abordagens adotadas ao longo da história, desde aqueles que rejeitam qualquer conexão entre Gênesis e a ciência até aqueles que forçam encaixes entre o texto e teorias contemporâneas. Sailhamer também atribui à versão King James Atualizada (KJA) um papel significativo na difusão de interpretações equivocadas sobre o relato da criação.

No geral, Genesis Unbound é uma obra valiosa. A leitura do livro desafia o leitor a reconsiderar pressupostos comuns sobre o texto bíblico e incentiva um estudo mais aprofundado da exegese hebraica. Embora alguns de seus argumentos possam gerar controvérsia, a contribuição de Sailhamer para o debate hermenêutico é significativa e merece atenção por parte de estudiosos e leitores interessados no tema.

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O autor é graduado em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (2022) e bacharel em Estudos Bíblicos pela Faculdade Internacional de Teologia Reformada (2022). Atualmente é Mestrando em Divindade por esta mesma instituição e Mestrando na Linha de História e Culturas Políticas do Programa de Pós-graduação em História da UFMG. Diácono na Igreja Presbiteriana do Jardim Canadá, em Nova Lima-MG.

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